26 abril 2010

Já não chove sangue lá fora

Já não chove sangue lá fora.
Os estrondosos tambores de osso deixaram de soar
e os trovões silenciaram.
O pus e o sangue pestilentos espalhados por cima de tábuas e pregos de cruzes e arcas
esquecidas
Começam a dar lugar a tímidas folhas, para que floresçam.
As nuvens vermelhas, a morte, a decadência, e o desespero, começam a dar lugar à
bonança.
E tímidos raios de luz, que em breve se tornarão num Sol estival,
prometem que toda a vida anteriormente destroçada começará, passo a passo, a
revelar-se e a tomar forma
Em breve o sangue transformar-se-á em doce orvalho primaveril!
E, lentamente, a esperança começa a viver de novo.




Dedicado a F. P.

Caíam as horas mortas da noite.

Caíam agora as horas mortas da noite. O luar brilhava sobre as folhas de uma árvore, que vibravam com o leve toque do vento. Era a chamada hora do lobo, hora em que os lobos não uivam, e em que, segundo o misticismo, o bem se defronta com o mal, seja por que se encontram no mesmo sítio, seja, talvez, porque travavam uma luta mais titânica para que o dia nasça, enquanto os mal agradecidos humanos repousam em suas casas, cada um escondendo uma inesperada reacção para o dia em que o Sol não se levante, o dia de os cientistas acusarem a ‘órbita x’ e o ‘funcionamento gravitacional y’, e os restantes acusarem os anjos de terem falhado, apesar de nunca antes os terem apoiado no seu combate.
O frio dessa noite era cortante e podíamos jurar que, dentro de nós, pequenos cristais de sangue congelado nos furariam as veias a qualquer momento, dando-nos morte imediata, ou que, se tentássemos articular a mão, demasiado bruscamente, com certeza os dedos nos cairiam.
O silêncio de morte era apenas interrompido pelo latido de um cão que arreganhava os dentes, talvez para as espadas do bem e do mal que se debatiam demasiado perto, talvez pelas elevadas hipóteses de o dia não voltar a nascer, ou talvez, ainda, pelo simples facto de sentir outro animal aproximar-se.
Deitado num jardim, sozinho, e coberto por um cartão, para enganar o frio, pelo menos psicologicamente, com uma garrafa de vinho já vazia e um pão roído, estava um Sem-abrigo, um antigo poeta, um amante, um lutador.
As lágrimas do Sem-abrigo rolavam pela cara, e ele podia jurar que as sentia cair, sólidas e congeladas, enquanto se perdia na névoa branca que se desprendia da sua respiração.
O Sem-abrigo apertou uma bolsa de couro velho, quase esfarrapado, que tinha dentro uma velha caneta de aparo (revivalismos dos poetas, vá-se lá entendê-los), e os seus manuscritos poemas.
Ele abraçava-os repleto de sentimentos misturados. Miscelâneas de dor, amor e ódio.
De que lhe serviam os poemas, naquele momento? De que lhe servia o amor, naquele momento? De que lhe servia o encontro húmido de dois sexos quentes, que o fizeram em tempos perder-se de prazer, naquele momento? De que lhe servia a volúpia das mulheres que mais amou, naquele momento? De que lhe servia a sua obsessão, já ultrapassada, mas que ainda assim lhe ocupava tanto espaço do passado e, consequentemente, das memórias, pelo amor, naquele momento? Naquele momento, não servia de nada, naquele momento já nada fazia sentido. Naquele momento, em que o ar gélido dançava nos seus pulmões para, por fim, ser libertado por fortes sacudidelas de tosse.
Nesta altura, neste ponto tão crucial da vida de um homem, como as horas antes da sua morte (ainda mais crucial quando sozinho, e tendo a perfeita noção de que é disso que se trata, da sua morte), as memórias assaltavam-no, e ele não sentia qualquer afeição por elas. Espantosamente, este Sem-abrigo, este filósofo da vida, esta encarnação poética, não queria pensar mais, não queria morrer, e também não queria viver, queria simplesmente desaparecer.
Haverá vida depois da morte? Um amigo, que ele tivera em tempos, e pelo que se lembrava, muito bonito, dissera-lhe ‘obviamente que há vida depois da morte, não é por morreres que a vida na terra vai acabar’. Boa resposta, para quem quer fugir à questão, ou de quem está prestes a morrer, e não quer enfrentar essa crua realidade. Mas, no seu íntimo, o Sem-abrigo sabia que não podia afirmar que depois da morte dele a vida na terra continuaria, ele não o poderia saber. Estaria morto por essa altura.
Estranhamente, os únicos sentimentos, a única vida que o Sem-abrigo afirmava, com toda a certeza, que existia, era a sua. E, infelizmente, a única coisa que, nas suas horas fatais, era real para ele estava prestes a esmorecer, a desvanecer-se... a desaparecer, como a chama de uma vela se esvai com um simples sopro.
Tentava a todo o custo recuperar a sua obsessão pelo amor. Queria a todo o custo acreditar em mais alguma coisa além da sua vida, prestes a ceder. Queria morrer e poder dizer ‘Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito’, mas não, Deus não lhe era nada, nem Cristo, nem as mulheres, nem o sexo. Os seus desejos eram pó que se espalhava pelo ar.
O Sem-abrigo abriu a pasta de couro. Tirou de lá um poema, uma folha amachucada, rasgada, gasta, um poema com vários anos. Olhou-o e leu-o em voz alta. Se alguém o ouvisse murmurar, parecer-lhe-ia um dito infernal, mais do que um poema. Mas não era verdade. Era um poema bonito e simples, daqueles poemas que poucos conhecem, por não clamar lugares comuns sobre o amor. Um poema que provavelmente ninguém queria ler. E por isso parecia um dito infernal. Ou talvez o parecesse porque, pura e simplesmente, as forças da voz lhe escapavam... Porque a sua morte se tornava, agora, numa ponte entre ele e as forças malignas e benignas que lutavam avidamente por levar o seu objectivo em frente, por fazer o dia nascer, ou para, pelo contrário, privar-nos da luz do Sol. O poema do Sem-abrigo era agora o grito de mil anjos e mil demónios que se debatiam pelo controlo do dia e da noite, pelo controlo do calor e do frio, pelo bem e pelo mal.
A fome e o frio já matavam o Sem-abrigo. Ele não podia suportar essa humilhação. Ele não podia morrer de fome. Ele não se torturaria assim. Beijou o seu poema, não por ele ser importante para ele, mas em sinal de puro agradecimento. Encostou-o ao pulso, e oferecendo a sua morte, como um presente, como uma carícia trocada entre dois amantes, rasgou a pele.
Apesar de não perder suficiente sangue para morrer, tal como desejara, a dor aguda da pele gelada a romper, a dor dos pequenos cristais que fluíam do seu pulso, levavam-no à loucura.
O Sem-abrigo interrompeu o silêncio da noite com um choro que se elevou acima do inaudível mas ensurdecedor barulho da luta transcendente que ali se realizava e, por uma fracção de segundo, nenhuma espada se tocou, nem nenhum grito se lançou no ar.
O Sem-abrigo partiu a garrafa de vinho, agarrou num dos seus cacos, no mais especial de todos, porque foi o único feito assassino, e libertou a raiva do corte anterior no seu pulso, que começou a sangrar abundantemente.
As gotas vermelhas escorriam agora para o chão. Provando que o Sem-abrigo ainda estava vivo, manchando o seu poema, e esborratando as palavras pretas, que eram agora como que corrigidas pela cor vermelha. Tinta puramente anarquista, e livre, que só existia para gritar os últimos momentos de uma vida e para manchar o seu passado.
A dor tomou-lhe então posse do corpo e ele começou a esmurrar o chão, a arranhar-se a si mesmo, com todo o ódio, a bater-se contra algo invisível... Esperemos que não estivesse a matar um anjo guerreiro, sem que o soubesse.
Ao fim de se bater incansavelmente, a respiração abandonou-o, e ele caiu sem forças, no chão, com a boca aberta e sangue a escorrer-lhe para lá, vindo das feridas que a sua cara fez ao bater no solo irregular, várias vezes, simplesmente para não se ver morrer de fome.
Os anjos pararam de combater, para ajudar o pobre poeta, para lhe prestar homenagem.
No dia seguinte, o Sol não nasceu.

02 janeiro 2010

Que diabo!

De que mais querem que abdique? Da minha escrita? Para o inferno convosco!! Que eu sou estúpido e escrevo mal, mas com limites. Já não tenho pretensões literárias. Como posso eu competir com milénios de produção anterior a mim? Agora, largar a minha escrita? Ai, diabo! Isso é que não.

19 maio 2009

Alguns lugares comuns sobre a morte

Quando tudo acaba, será que valeu a pena?
Se eu morresse hoje, morreria realizado?
Este tipo de reflexões levam-nos constantemente a lugares comuns sobre a vida, amaneira de a ver, de a aproveitar. Mas o que podemos entender como aproveitar a vida? Será que aproveitar a vida é realizar actividades extremas, que nos levam ao limite? Ou será que aproveitar a vida é construir, passo a passo um futuro?
Passamos tanto tempo a construir futuros que nunca chegamos a alcançá-los.
Se eu morresse amanhã, perderia tempo a pensar no que devo fazer, ou faria?
O que nos leva a investir? Aquilo que nos leva a investir é uma espécie de certeza estranha de que vamos acordar no dia seguinte. Toda a gente morre um dia, e quantas pessoas podem adivinhar que vão morrer no dia em que morrem? Acordam como noutro dia qualquer, vivem como noutro dia qualquer.
Porque será que não temos todos direito a saber quanto tempo vivemos? Se todos soubéssemos o dia da nossa morte, não poderíamos gerir melhor o nosso tempo?
Quando chegamos a um chat, e nos perguntam a idade, cidade, e sexo, podiam perguntar também tempo de vida. Seria lógico, os casais poderiam apontar para tempos de vida semelhantes, teriam filhos na altura certa. Cada um construiria uma carreira segundo o tempo que tivesse disponível. Ninguém criaria falsas esperanças, falsos sonhos. Não. Todos nós poderíamos cumprir de um modo muito mais severo as nossas religiões, para garantir a nossa entrada no Paraíso. Eventualmente, na véspera da morte poderíamos distribuir todo o nosso dinheiro a mendigos, e uns diriam ‘dê àquele, que ainda tem dez anos de vida, quando a mim restam uns dias’.
Não saberíamos todos viver melhor sabendo quando morremos? Era fácil planear à partida as mulheres ou homens que se queriam experimentar, as bebidas, as viagens!
Quem me poderia censurar por largar tudo na véspera da minha morte? Ou um mês antes? Para levar uma vida de que realmente me orgulhe.
Estamos sempre a adiar coisas, quando estamos sempre todos com uma espada por cima da cabeça, presa a um fio muito podre, prestes a partir. E em vez de sermos felizes, vivemos numa comunidade a transpirar angústia. Temos uma esperança média de vida de 75 anos, e passamo-los sozinhos, tristes, e angustiados. Aposto que além de camadas gasosas, todo o nosso planeta está rodeado de uma densa camada roxa de melancolia, e por mais ridículo que pareça, enquanto todos caminhamos para a morte, fazemos questão de viver já mortos.

A perda de um Mestre é capaz de abalar até o coração mais frio.

Hoje em dia, todos os alunos, mais novos ou mais velhos têm por ano uma quantidade incontável de professores, que lhes são atribuídos aleatoriamente.
No meio desses professores, e talvez noutras situações que são vividas fora da escola, começam realmente a surgir os Mestres, que podem ser um, dois ou mil, mas que nunca são atribuídos de forma aleatória.
O Mestre é aquele que sabe exactamente tudo aquilo que nós queremos aprender, é aquele que nos faz evoluir e crescer por dentro, nos estimula a melhorar, e nos causa um carinho de tal forma forte, que nos preocupamos com ele em todas as situações.
Quando um Mestre emerge nas nossas vidas, apesar de nem sempre o compreendermos, nunca o criticamos realmente, porque nos sabemos inferiores, e tudo aquilo que desejamos é conseguir absorver todas as pingas de informação que ele disponibilize para nós. A relação Mestre-aluno passa por muito mais que a simples aprendizagem de uma matéria ou disciplina, passa sim por um enriquecimento mutuo, muitas vezes emocional.
Não há maior perda para um Mestre, que a de um aluno, seja uma perda mais física, ou seja uma perda mais espiritual, como por exemplo uma desistência, um desrespeito ou uma traição.
No entanto vos digo com toda a certeza, poucas no mundo são as perdas pessoais que podem superar a dor da perda de um Mestre.
Quando um Mestre é perdido, ou quando sentimos que o estamos a perder, fica a triste sensação de que ainda há muito que aprender, e que nunca ninguém nos poderá ensinar da mesma forma. Sobra apenas um vazio, uma espécie de ralo por onde se começa a esvair tudo aquilo que crescemos emocionalmente. É claro que nunca se esvairá, mas parece que ainda podíamos ter ganho tanto, e ganhamos tão pouco.
Talvez a culpa até seja do aluno, que não soube como manter o Mestre ‘vivo’, e ainda que não seja, nunca deixará de se culpabilizar. Trabalhará o dobro, e investirá ainda mais fortemente naquilo que aprendia, só para ter a certeza de que sobrou alguma coisa do Mestre, que não foi só um momento, que os seus ensinamentos se prolongam e prolongarão durante toda a sua vida, e dos possíveis alunos que virá a ter.
Digo que nunca nenhuma pessoa estará completa se não tiver pelo menos um Mestre na vida. E que a perda de um Mestre é capaz de abalar até o coração mais frio.

18 maio 2009

Oficina de escrita de português: Escreva um texto no qual descreve as sensações que sentiria se fosse um dos personagens da pintura (150-200 palavras)


Abro os olhos.
Não sei quem sou, não sei onde estou ou porquê...não sei quem está ao meu lado.
O céu azul cobre-nos, e por toda a areia estranhos reflexos doirados tendem a ofuscar-me a alma, como se um enorme tesouro se estendesse à minha frente.
Entre o céu e a terra está uma rosa, suspensa no ar. Porque estará ela suspensa no ar? Quem sabe... talvez se tenha fartado da sua pequenez terrena, talvez nos esteja agora a mostrar o quão pequenos somos nós. E eu olho-a, desprovido de memória, sem medo. Não há razões para ter medo, nada me acontecerá. Não sou eu com certeza a personagem principal, sou pequeno demais ! Sou como um minúsculo figurante num quadro surrealista, e enquanto críticos de arte se esforçam por encontrar um significado metafísico para esta flor que voa, eu limito-me a observá-la. Frente a frente. Esquecido por todos. Não poderei jamais descrever a sensação, precisamente por ser algo que nunca ninguém sentiu. Ninguém poderá perceber porque voa ela. Talvez estejamos todos enganados, e não haja nenhuma razão. Talvez voe apenas porque voa, tal como algumas estão na terra.
Sou minúsculo.
A sombra da rosa cobre-me...e começo a ter frio...

17 maio 2009

Oficina de escrita de português: Escreva um texto subordinado ao tema: O poema cresce...(80-100 palavras)

O poema cresce se eu quiser.
O poema é meu, e ninguém manda nele.
Rotular um poema, seja de que forma for, ainda que seja para dizer que ele cresce, é errado! Um poema é a coisa mais anarquista que existe. Pode variar desde os muito estudados decassílabos de Camões até ao verso solitário de João Miguel Fernandes Jorge. Um poema pode ser uma palavra e não perde a beleza por isso. Tal como uma criança pequena é bela. Talvez seja por forçarmos as crianças a crescer que elas ficam más pessoas. Talvez algumas crianças devessem crescer porque querem e outras devessem permanecer pequenas eternamente, tal como os poemas.