Caíam agora as horas mortas da noite. O luar brilhava sobre as folhas de uma árvore, que vibravam com o leve toque do vento. Era a chamada hora do lobo, hora em que os lobos não uivam, e em que, segundo o misticismo, o bem se defronta com o mal, seja por que se encontram no mesmo sítio, seja, talvez, porque travavam uma luta mais titânica para que o dia nasça, enquanto os mal agradecidos humanos repousam em suas casas, cada um escondendo uma inesperada reacção para o dia em que o Sol não se levante, o dia de os cientistas acusarem a ‘órbita x’ e o ‘funcionamento gravitacional y’, e os restantes acusarem os anjos de terem falhado, apesar de nunca antes os terem apoiado no seu combate.
O frio dessa noite era cortante e podíamos jurar que, dentro de nós, pequenos cristais de sangue congelado nos furariam as veias a qualquer momento, dando-nos morte imediata, ou que, se tentássemos articular a mão, demasiado bruscamente, com certeza os dedos nos cairiam.
O silêncio de morte era apenas interrompido pelo latido de um cão que arreganhava os dentes, talvez para as espadas do bem e do mal que se debatiam demasiado perto, talvez pelas elevadas hipóteses de o dia não voltar a nascer, ou talvez, ainda, pelo simples facto de sentir outro animal aproximar-se.
Deitado num jardim, sozinho, e coberto por um cartão, para enganar o frio, pelo menos psicologicamente, com uma garrafa de vinho já vazia e um pão roído, estava um Sem-abrigo, um antigo poeta, um amante, um lutador.
As lágrimas do Sem-abrigo rolavam pela cara, e ele podia jurar que as sentia cair, sólidas e congeladas, enquanto se perdia na névoa branca que se desprendia da sua respiração.
O Sem-abrigo apertou uma bolsa de couro velho, quase esfarrapado, que tinha dentro uma velha caneta de aparo (revivalismos dos poetas, vá-se lá entendê-los), e os seus manuscritos poemas.
Ele abraçava-os repleto de sentimentos misturados. Miscelâneas de dor, amor e ódio.
De que lhe serviam os poemas, naquele momento? De que lhe servia o amor, naquele momento? De que lhe servia o encontro húmido de dois sexos quentes, que o fizeram em tempos perder-se de prazer, naquele momento? De que lhe servia a volúpia das mulheres que mais amou, naquele momento? De que lhe servia a sua obsessão, já ultrapassada, mas que ainda assim lhe ocupava tanto espaço do passado e, consequentemente, das memórias, pelo amor, naquele momento? Naquele momento, não servia de nada, naquele momento já nada fazia sentido. Naquele momento, em que o ar gélido dançava nos seus pulmões para, por fim, ser libertado por fortes sacudidelas de tosse.
Nesta altura, neste ponto tão crucial da vida de um homem, como as horas antes da sua morte (ainda mais crucial quando sozinho, e tendo a perfeita noção de que é disso que se trata, da sua morte), as memórias assaltavam-no, e ele não sentia qualquer afeição por elas. Espantosamente, este Sem-abrigo, este filósofo da vida, esta encarnação poética, não queria pensar mais, não queria morrer, e também não queria viver, queria simplesmente desaparecer.
Haverá vida depois da morte? Um amigo, que ele tivera em tempos, e pelo que se lembrava, muito bonito, dissera-lhe ‘obviamente que há vida depois da morte, não é por morreres que a vida na terra vai acabar’. Boa resposta, para quem quer fugir à questão, ou de quem está prestes a morrer, e não quer enfrentar essa crua realidade. Mas, no seu íntimo, o Sem-abrigo sabia que não podia afirmar que depois da morte dele a vida na terra continuaria, ele não o poderia saber. Estaria morto por essa altura.
Estranhamente, os únicos sentimentos, a única vida que o Sem-abrigo afirmava, com toda a certeza, que existia, era a sua. E, infelizmente, a única coisa que, nas suas horas fatais, era real para ele estava prestes a esmorecer, a desvanecer-se... a desaparecer, como a chama de uma vela se esvai com um simples sopro.
Tentava a todo o custo recuperar a sua obsessão pelo amor. Queria a todo o custo acreditar em mais alguma coisa além da sua vida, prestes a ceder. Queria morrer e poder dizer ‘Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito’, mas não, Deus não lhe era nada, nem Cristo, nem as mulheres, nem o sexo. Os seus desejos eram pó que se espalhava pelo ar.
O Sem-abrigo abriu a pasta de couro. Tirou de lá um poema, uma folha amachucada, rasgada, gasta, um poema com vários anos. Olhou-o e leu-o em voz alta. Se alguém o ouvisse murmurar, parecer-lhe-ia um dito infernal, mais do que um poema. Mas não era verdade. Era um poema bonito e simples, daqueles poemas que poucos conhecem, por não clamar lugares comuns sobre o amor. Um poema que provavelmente ninguém queria ler. E por isso parecia um dito infernal. Ou talvez o parecesse porque, pura e simplesmente, as forças da voz lhe escapavam... Porque a sua morte se tornava, agora, numa ponte entre ele e as forças malignas e benignas que lutavam avidamente por levar o seu objectivo em frente, por fazer o dia nascer, ou para, pelo contrário, privar-nos da luz do Sol. O poema do Sem-abrigo era agora o grito de mil anjos e mil demónios que se debatiam pelo controlo do dia e da noite, pelo controlo do calor e do frio, pelo bem e pelo mal.
A fome e o frio já matavam o Sem-abrigo. Ele não podia suportar essa humilhação. Ele não podia morrer de fome. Ele não se torturaria assim. Beijou o seu poema, não por ele ser importante para ele, mas em sinal de puro agradecimento. Encostou-o ao pulso, e oferecendo a sua morte, como um presente, como uma carícia trocada entre dois amantes, rasgou a pele.
Apesar de não perder suficiente sangue para morrer, tal como desejara, a dor aguda da pele gelada a romper, a dor dos pequenos cristais que fluíam do seu pulso, levavam-no à loucura.
O Sem-abrigo interrompeu o silêncio da noite com um choro que se elevou acima do inaudível mas ensurdecedor barulho da luta transcendente que ali se realizava e, por uma fracção de segundo, nenhuma espada se tocou, nem nenhum grito se lançou no ar.
O Sem-abrigo partiu a garrafa de vinho, agarrou num dos seus cacos, no mais especial de todos, porque foi o único feito assassino, e libertou a raiva do corte anterior no seu pulso, que começou a sangrar abundantemente.
As gotas vermelhas escorriam agora para o chão. Provando que o Sem-abrigo ainda estava vivo, manchando o seu poema, e esborratando as palavras pretas, que eram agora como que corrigidas pela cor vermelha. Tinta puramente anarquista, e livre, que só existia para gritar os últimos momentos de uma vida e para manchar o seu passado.
A dor tomou-lhe então posse do corpo e ele começou a esmurrar o chão, a arranhar-se a si mesmo, com todo o ódio, a bater-se contra algo invisível... Esperemos que não estivesse a matar um anjo guerreiro, sem que o soubesse.
Ao fim de se bater incansavelmente, a respiração abandonou-o, e ele caiu sem forças, no chão, com a boca aberta e sangue a escorrer-lhe para lá, vindo das feridas que a sua cara fez ao bater no solo irregular, várias vezes, simplesmente para não se ver morrer de fome.
Os anjos pararam de combater, para ajudar o pobre poeta, para lhe prestar homenagem.
No dia seguinte, o Sol não nasceu.